Eu hei de ir, ABC

Eu hei de ir, ABC

Rubens Lemos, filho

Na coletânea de canções sobre o ABC, há o verso que mexe com o coração curtido de tantas alegrias e do orgulho indescritível de pertencer ao mundo supremo de Natal: “Aonde Fores, ABC, eu hei de ir.” Na minha infância, em preto e branco, era a voz rouca do meu pai a entoar a melodia que encantava o menino dedicado à razão louca dos seus sonhos. O ABC, estivesse no longe dos longes, meu coração estaria com ele.

O meu pai se foi há 17 anos, mas está protegendo o ABC com seu espírito de ternura e poesia. Seu último pedido, desenganado pelos médicos, teimoso como o Quixote de lanças em forma de bandeira, foi simples. Um rádio de pilha para ouvir os jogos do ABC. Morreu exatamente um mês antes de um dos títulos mais estrondosos do clube: o de 1999, num gol contra desenhado por ele, 1×0 sofrido contra o favorito América, jogando pelo empate e comemorando por antecipação.

Lá se foram 17 anos e a saudade é a do dia seguinte vazio sem seu bigode nicotinado e a liberdade que sua presença impunha sem força. Nas conquistas e derrotas do ABC, repito o que bem poderia ter sido o epitáfio, a frase definitiva do cancioneiro Mais Querido,jamais posta no túmulo de Rubens Lemos, pai. “Aonde fores, ABC, eu hei de ir”.

A Frasqueira em seu rosto imenso, coletivo e mítico no uivo assustador(para os adversários), é a imagem e semelhança do ABC. Sou da Frasqueira, do Frasqueirão do Castelão destruído, de lágrimas perenes em sonetos de Marinho Apolônio, Danilo Menezes, Silva, Dedé de Dora, Alberi, Geraldo, Sérgio Alves(ah, meu matador!), Robgol, Reinaldo, a Aleluia dos necessitados de arquibancada, Odilon,Hélio Show, Shumacher, Jorge Pinheiro, Nicácio, Alexandre Mineiro, Mário César, Noé Macunaíma e Jonas.

A cidade da atmosfera humana renasce, se veste de alegria passional e de tensão irmanada em classes sociais, em preferências religiosas, políticas, sexuais, cinematográficas.

O ABC congrega contrários dentro do seu imenso cordão afetivo. O ABC é a representação futebolística do cidadão comum, que faz de um jogo, dramaturgia suburbana no triunfo e no fracasso.

É a hora de separar meninos de homens. E o ABC é feito de homens, de machos, infantes, a começar pelo técnico Geninho, aumentativo de altivez, estratégia e liderança carismática.

O ABC está em Ribeirão Preto para enfrentar o Botafogo. No jogo que aguardamos a cada respiração agoniada e angustiante. O primeiro do mata-mata.

Se pudesse dizer aos jogadores uma enciclopédia de estímulo e palavras saltando da alma, diria: “Vocês não estarão sozinhos. Cada um de nós estará lutando diante da multidão anfitriã, feito resistência heroica de guerra, da santa guerrilha que se agiganta na raça e no sentimento.”

ABC é sentimento. ABC é glória. ABC junta em ecumenismo surreal, vivos e mortos, que sobrevoam nossas cabeças na jornada sagrada do chute a mais. Do gol impossível. Do berro impresso nas nuvens.

Ribeirão Preto, São Paulo, é bem aqui. Em nossas coronárias negras de brio. Ribeirão Preto e o Botafogo merecem respeito, sim. Mas não serão invencíveis diante de uma entidade cultural – não apenas um clube -, para o qual longe simplesmente é lugar que não existe.

O ABC é o universo. Maior que o mundo, o sistema solar e a distância da Europa e da França até a Bahia ou Madagascar.

Aprendi na prece de minha infância. Em preto, branco e amor: “Aonde fores, ABC, eu hei de ir”.

Ouça na voz de Jean Fernandes clicando AQUI.