Por Alex Medeiros
O ano de 1969 foi de mudanças profundas. Antes do caminhão partir do bairro de Santos Reis no rumo do bairro das Quintas, carregado com os móveis e com minha família, a última imagem da rua no pequeno bairro foi de João Galego tocando uma bola em direção à praia.
Era um jogador do ABC F.C., centroavante rompedor, sem muita habilidade, mas que encontrou nos passes perfeitos de Alberí, o gênio do time, os gols que o tornaram um matador naquele ano. Na nova rua em que fui morar, um outro galego surgiria com sua bola.
Foi no ano em que completei 10 anos e a distância entre o lar e a rua foi aumentando a cada descoberta; as brincadeiras ofereciam cada vez mais novas ruas a explorar. Como cumprindo a sina de um seriado da TV, audaciosamente indo onde jamais eu estivera antes.
Assim descobrí que no CIAT, uma base da Marinha, na margem do Rio Potengi que banha Natal, um belo gramado era utilizado para treinos de alguns times da cidade, principalmente, e obviamente, o Riachuelo, clube mantido pelos militares de branco.
Naquele 1969, um garotão louro, lateral esquerdo que tocava a bola magistralmente com os dois pés, deixou o time naval e foi para o ABC. Seu talento nos últimos treinos pela equipe azul e branca foi a primeira imagem que marcou meus dias no novo bairro.
Marinho Chagas matou a pau com a camisa alvinegra do ABC, atuava com a raça de um gladiador e a habilidade de um atirador de facas. Sem qualquer informação do que fora Nilton Santos no Botafogo, jogava em Natal com a categoria do grande mestre.
Trama dos deuses, ao se transferir para o Náutico, no ano seguinte, logo chamou a atenção do time carioca da estrela solitária, que vivia buscando resolver o vácuo na lateral esquerda. De 1972 a 1974, Marinho encantou o país e conquistou o mundo.
Entre uma folga e outra, já gozando a celebridade de craque e a fama de astro pop dos gramados, Marinho aparecia em Natal exibindo o novo visual de hippie boleiro, a Bruxa que enfeitiçava donzelas nas ruas do Rio de Janeiro e da Europa.
Nas suas andanças pelos campinhos das peladas de Natal, acabamos nos encontrando, ele já um cara experimentado na vida, vinte e poucos anos, e eu o adolescente que mantinha a tietagem, glorificando-o nos meus times de botão e caixas de fósforos.
Marinho Chagas foi um dos mais incríveis jogadores que meus olhos já viram, um artista em campo e fora dele, uma figura pública que jamais se preocupou em delimitar os espaços entre o profissional e o homem. Nunca escondeu suas angústias e devaneios.
Na composição do seu perfil psicológico, se misturam os gênios de Heleno de Freitas, de Garrincha, de George Best, de Nei Conceição, de Maradona, de Paul Gascoigne. Via nele a expressão de um Peter Pan buscando escapar ao destino da natureza humana.
Na minha coleção de ídolos do futebol, ele é a figurinha mais rara, mais cultuada, aquela que a gente jamais colocou nas apostas do jogo de bafo. Marinho é a permanência da minha infância nas referências que teimam em se manter acesas.
É o ídolo que o destino transformou em amigo, um velho amigo que quando a gente encontra nos abastece das melhores lembranças. Como craque de futebol, as lembranças que guardo de Marinho Chagas são de um mito que Natal deveria perpetuar em sua História.
Inesquecíveis são suas jogadas e gols pelo Botafogo, pelo Fluminense, pela seleção brasileira, pelo Cosmos e pelo São Paulo. O canhão do Nordeste nas tantas manchetes da grande imprensa, o terror das menininhas alemãs, correndo para assediá-lo na Copa de 1974.
E se Heleno traçou Evita Perón, ou se Garrincha foi o amor da vida de Elza Soares, Marinho Chagas foi o James Dean tropical que assanhou a libido da princesa Grace Kelly. Sem dribles, entortava pescoços de dondocas nas calçadas de Copabacana.
Em 1974, o jogo Brasil x Holanda marcou a trajetória de Marinho. O jogo foi um trauma, caímos abatidos por 2 x 0, pelo talento fantástico de Cruijff e o carrossel holandês. Mas, no apagão da seleção, uma luz não deixou de brilhar o tempo todo.
Luz de fachos amarelos e azuis na mistura dos cabelos longos de Marinho e a camisa da seleção. Os holandeses descobriram que pelo lado direito da sua defesa havia um perigo com a mesma ousadia da laranja mecânica. Eram as arrancadas incríveis da Bruxa.
O Brasil tomou um baile, enquanto Marinho infernizava os holandeses como um El Cid, sozinho e iluminado pela sua própria luz. Mas o grande momento do jogo estava guardado para o final, um quadro que guardo até hoje nas fotos da revista Placar.
Milhares de torcedores com camisas laranjas festejavam o triunfo da Holanda. O jogador Krol procura Marinho Chagas, que chora copiosamente. Krol abraça o brasileiro e levanta-lhe o braço direito mostrando-o à sua torcida, que aplaude.
O holandês compreendia que havia um vencedor solitário, um adversário com honra, um craque a quem não cabia castigo por jogar desnudo de táticas passadas. Cercado por milhões de telespectadores em todo o mundo, Krol pediu, com a grandeza dos vitoriosos, para Marinho Chagas a tradicional troca de camisas.
Tenho o coração despedaçado diante da notícia da sua morte, na madrugada de domingo, primeiro dia do mês da Copa, que ele esperava com tanta alegria, distribuindo autógrafos entre colecionadores de figurinhas. O eterno menino brincando com a vida, como se ela não fosse tão difícil quanto uma seleção holandesa.
Natal perdeu seu filho mais célebre no âmbito mundial, o herdeiro legítimo do gênio Nilton Santos, ídolo de Beckenbauer e Platini, ícones universais da Alemanha e França. Se foi às vésperas da copa o único potiguar com três Bolas de Prata, o maior jogador da história do futebol do RN. Meu craque preferido, meu ídolo inesquecível, meu amigo, minha figurinha mais importante.
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